Espiritualidade
Do Tabor ao Gólgota
Homilia
Domingo II no Tempo da Quaresma
Troquemos o instante pelo eterno
sigamos o caminho de Jesus
a primavera vem depois do inverno
a alegria virá depois da Cruz.
(Hino da Liturgia das Horas)
1. Seguir Jesus não é uma tarefa fácil porque é exigente. É exigente e requer muito de nós. Seguir Jesus requer disponibilidade e vontade, coragem e força e, sobretudo, requer radicalidade. Seguir Jesus requer uma transfiguração, uma mudança, uma metamorfose, uma transformação. Seguir o Mestre requer que sejamos mais imagem d'Ele e fazer de nós mais imagem e semelhança d'Ele. E isto não é fácil!
A quaresma é, por excelência, o tempo da transfiguração, o tempo de se deixar transfigurar e de configurar a vida com a vida do Mestre. Sim, porque transfigurar e configurar não são a mesma coisa, mas uma leva à outra. Quanto mais nos configuramos - ou tomamos a mesma forma - tanto mais somos transfigurados; quanto mais nos configuramos a Jesus, tanto mais somos transfigurados; quanto mais a nossa vida toma a forma da vida de Jesus, tanto mais seremos por ele transfigurados.
É de transfigurações, de configurações e de transformações ou metamorfoses que nos falam as leituras deste Domingo II na Quaresma.
2. A primeira leitura conta-nos a história de Abraão e de uma transformação radical na sua vida que implicou uma mudança de estilo porque se tratou de uma aproximação de um mistério - que é o próprio Deus - e de uma configuração de vida àquele que era o projecto de Deus.
Abraão é chamado por Deus, é convidado a uma desinstalação profunda na sua vida, é convidado a deixar tudo - família, terra, pais - e é convidado à obediência a um plano de salvação, que não é dele, mas de Deus. É um relato de vocação, de chamamento...
Mas isto de ser chamado por Deus não é um privilégio, não é um prémio ou uma promoção. Ser chamado por Deus não é uma promoção laboral ou um subir na carreira... Não! Ser chamado por Deus, pelo contrário, é um convite a realizar uma tarefa difícil e exigente. Ser chamado por Deus é um convite a ser um sinal de Deus no meio da Humanidade! Ser um sinal de Deus! Ser um sinal!
Nesta dinâmica do «deixar tudo», há a certeza de que não ficaremos sem nada, porque permaneceremos com Aquele que é Tudo. É isso que Deus promete a Abraão: «Farei de ti uma grande nação», «Abençoar-te-ei», «Engrandecerei o teu nome», «farei de ti uma bênção». Ou seja, é como se dissesse: Não desanimes! Não ficarás desamparado porque, quem Me tem, tem tudo!
É aqui que se dá a transformação ou a metamorfose de Abraão, porque confia nesta presença eterna de Deus na sua vida e na sua missão. Por isso, sem discutir ou questionar, apenas se põe a caminho.
3. O Evangelho fala-nos da Transfiguração de Jesus. Só entenderemos este trecho do Evangelho se fizermos o exercício de revisitar o que vem desde o capítulo 16: Pedro confessa que Jesus é «o Messias, o Filho de Deus vivo»; Jesus entrega-lhe o poder sobre a comunidade dos crentes; Jesus anuncia que terá que «subir a Jerusalém e sofrer muito [...] ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar»; Pedro repreende-o: «Deus te livre, Senhor! Isso nunca há-de acontecer!» e Jesus corrige-o: «Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são de Deus, mas dos homens»; Jesus apresenta as condições para aqueles que O querem seguir: «Se alguém quiser seguir-Me, 1) renuncie a si mesmo, 2) tome a sua Cruz e 3) siga-Me».
É por causa de todo este enredo que Jesus se transfigura! É face ao desânimo dos seus discípulos que Jesus sobe ao Tabor! Porque, se o deserto é o lugar onde Deus nos fala ao coração, é no monte que Deus se revela.
Tal é o desânimo dos discípulos, porque não entenderam a missão de Jesus e também eles tinham criado um ídolo, como também nós criamos ídolos: o Messias-Rei, o que vinha restaurar o Reino, o que vinha aniquilar o mal e a injustiça, o indestrutível diz-nos que vai morrer? Aquele que nos chamou para beneficiarmos do seu poder terá que sofrer?
É desta «luta» entre o discípulo e o mestre que surge o medo e a dúvida: Aquele que é messias vai sofrer e morrer? E pior que isto: Nós que lhe fomos fiéis e o seguimos também teremos a mesma sorte?
É diante de todo este cenário que Jesus se transfigura e se revela na glória e assim mostra que não a morte e a cruz não têm a última palavra e, com isto, mostra que não há sofrimento que não traga glória. Numa palavra, Jesus mostra que «Não há vitória sem Cruz».
E todo este relato nos remete para dois montes: o Tabor da Transfiguração e o Gólgota da Paixão. São, de facto, duas faces da mesma moeda, porque não há vitória sem Cruz.
Se na Transfiguração Jesus sobe ao monte Tabor, na Paixão ele sobe ao Gólgota; se na Transfiguração as suas vestes são brilhantes, na Paixão até a túnica é repartida; se no Tabor o seu rosto é resplandecente, no Gólgota o seu rosto é o rosto sofredor e padecente; se no Tabor Moisés e Elias falam com ele, no Gólgota os mortos são libertados das cadeias da morte; se na Transfiguração a voz de Deus diz: «Este é o meu filho muito amado», na Paixão é a voz de um estrangeiro e de um pagão, do centurião que confessa: «Este é, na verdade, o Filho de Deus». A Paixão e a Transfiguração são as duas faces da mesma moeda.
Jesus não quer fazer um show, não quer fazer um espectáculo, mas apresentar aos discípulos aquilo que os espera depois de um longo caminho de seguimento. Por isso, se por um lado «é bom estarmos aqui», por outro lado há o medo e a dúvida.
A grande tentação do discípulo é a instalação e o comodismo, ou melhor, a busca de uma teoria cómoda do seguimento que nos implica, mas apenas em parte. Identificamo-nos com Jesus, queremos seguir Jesus, mas ficamos por aqui... pela vontade! É a comodidade ideológica do seguimento porque, não raras vezes, somos como os discípulos e caímos no desânimo. É por causa desta tentação que Jesus se transfigura e permite estes momentos de Tabor na nossa vida.
O imperativo não é o «ficai aqui», mas o «Escutai-O» e o «Levantai-vos». O imperativo é a acção, que passa pelo seguimento do Mestre neste caminho de amor extremado e entrega total sem condicionalismos.
4. O sofrimento faz parte do caminho do discípulo. Mais, o sofrimento é a pequena «via sacra» da nossa vida, porque o verdadeiro caminho do discípulo é o caminho do Mestre, o caminho do amor, que é o caminho da Cruz, pois não há vitória sem Cruz.
Se o inverno do sofrimento nos dá medo e nos imobiliza, pensemos na primavera da glória; se a tentação de «montar a tenda» para reter a Deus aparece, pensemos na acção libertadora da sua Luz transfigurada e transfiguradora. É no caminho da doação que mais se recebe.
O único caminho do discípulo é o de subir serenamente ao monte da Paixão, sofrendo, padecendo, mas amando muito, porque é esse o caminho da vida, da entrega total e do amor levado até ao fim. Assim o fez Jesus, caminhando serenamente com a Cruz, até ao Gólgota para ali nos mostrar que não há vitória sem Cruz.
Que o Espírito de Deus nos faça caminhar na fé sem medos, mas com a luz transfigurada e transfiguradora de Jesus no coração para, assim, podermos também nós passar do Gólgota ao Tabor.
Porque, quanto mais nos configuramos com Ele, tanto mais seremos por Ele transfigurados.
Quaresma, o tempo do regresso
Naquele tempo, o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás. Vivia com os animais selvagens, e os Anjos serviam-n’O. Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a pregar o Evangelho, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Ao contrário dos outros Evangelhos Sinópticos, o Evangelho de Marcos, que vamos ler neste domingo, no que diz respeito às tentações de Jesus no deserto, cinge-se à simples narração do acontecimento e não a contar detalhadamente o que no deserto se passou.
Marcos cinge-se ao mais importante do que as tentações de Jesus, já que se fixa na primeira pregação de Jesus: «Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Geralmente no tempo da Quaresma, falam-nos muito do pecado, mas gosto de ver as coisas da perspectiva da graça. É pela graça de Deus que nos arrependemos e não pelo medo do pecado ou das consequências do mesmo.
O termo conversão e arrependimento têm a mesma raíz no grego (Μετάνοια) e, no grego, significa mais regresso. Quando vemos e lemos o Antigo Testamento o termo regressar (לחזור) aparece inúmeras vezes para designar o processo de conversão de Israel no deserto.
Deserto é, por isso, um lugar muito simbólico no que diz respeito à mudança de vida e, por isso, vemos que a primeira forma de vida monástica é a do deserto e, tantas vezes, diz-se que os monges vivem no deserto do seu mosteiro. Enfim, tudo isto para justificar o simbolismo que o deserto assume na vida de Jesus e, por consequência, na vida dos cristãos.
Gosto de um cântico que cantamos aqui no Convento, inspirado na profecia de Joel (2, 12), que diz:
«Regressai a Mim de todo o coração. Eu sou um Deus de Ternura».
No Novo Testamento, o Evangelho do Filho Pródigo - ou do Pai Misericordioso - é o que mais usa o termo regressar, já que é toda uma parábola sobre a conversão e os motivos que nos levam a pedir perdão.
Regressar a Deus é ir pelo caminho que ele nos traça e, no qual, nós criamos desvios, abrimos caminhos paralelos, escavamos pequenas vias e tudo porque queremos chegar mais rápido e sem dificuldades à meta, esquecendo-nos que o caminho tem espinhos e pedras.
Regressar a Deus é estar consciente de que não valemos a nós próprios e que precisamos dele, qual farol que indica o porto, para também nós chegarmos a bom porto, que é Ele mesmo.
Regressar é viver em comunhão, com Ele e com aqueles que Ele ama, não nos sentindo mais ou superiores aos outros, menos pecadores que os outros, mas sabendo que a graça é distribuída conforme as nossas necessidades.
Regressar é não ter medo de regressar a Deus, pois Ele não é um Deus Terrível, mas um Deus de Ternura que nos acolhe como filhos amados, ainda que perdidos.
O tempo da Quaresma é um tempo de regresso, mas um regresso que se quer definitivo. Muitas vezes somos tentados a fazer uma Quaresma temporal - e incluo-me também -, abandonando certos vícios, privar-se disto ou daquilo, de não fazer esta ou aquela coisa que nos dá gozo, mas chegada a Páscoa, tudo volta ao mesmo. O regresso implica algo de definitivo, caso contrário seria apenas uma visita. Mas nós queremos regressar definitivamente a Deus e, por isso, a viver definitivamente a vida que Ele nos propõe.
Por isso, a primeira palavra de Jesus, em Marcos, é o convite à vida em Deus: «Arrependei-vos e acreditai no Evangelho», isto é, regressai a Deus e acreditai em Mim.
É por Ele, pela sua Páscoa, que cumprimos este longo caminho de Quaresma, no deserto da vida, cingindo-nos ao essencial, deixando de lado algumas coisas que não nos fazem assim tanta falta, para nos aproximarmo-nos do mistério Pascal.
A Quaresma é caminhar ao lado de Jesus rumo ao Pai, no qual reside a alegria e o amor, a vida e a ressurreição.
Não faria sentido, para nós, celebrar a Quaresma se não tivéssemos como horizonte a Páscoa, não faria sentido lembrar a morte se não houvesse a certeza da Vida, não faria sentido adorar a Cruz, se não tivéssemos como horizonte a Ressurreição. É assim que o Cristão - que é positivo por natureza - tem de ver este tempo.
A Metánoia, a conversão, está associada, em alguns escritos extra-bíblicos, à revolta, batalha, revolução, transformação. Como vêm, também isto faz parte da Quaresma.
A nossa conversão é uma revolução interior que não nos pode deixar iguais, algo tem que mudar, algo tem que se transformar: pequenos defeitos, pequenas faltas, pequenos actos. E, para tal, é necessário criar condições.
Por isso, criei o hábito em mim mesmo de, em cada sexta-feira da Quaresma, inspirado pelo Papa Francisco, ter um gesto de misericórdia. Esta semana, dirigi este gesto para dois campos: as saudações e as despedidas. A primeira atitude foi a de me obrigar a saudar as pessoas que se cruzam comigo, por exemplo os funcionários da Universidade, os professores, etc... A segunda atitude foi-me quase imposta já que me tive de despedir de uma pessoa que viveu comigo e porque morreu outra que conhecia.
Assim, nesta atitude de regresso a Deus, há que entender qual a melhor maneira de o fazer e qual a melhor forma de me sentir a regressar e a caminho de Deus.
É isto converte-se e acreditar no Evangelho: tornar a minha vida mais parecida à de Jesus.
Nossa Senhora da Vandoma
Padroeira da Diocese do Porto
Por fr. José Manuel Silva, OP
As invasões árabes começaram na península e, em cerca de 710, invadiram a cidade, tendo chegado a Lisboa em 714. Este domínio durou mais de um século quando, em 868, Vímara Peres (que, segundo o Prof. Hermano Saraiva, foi o verdadeiro fundador do Condado Portucalense) avança contra as forças muçulmanas.No século X, entraram na barra do Douro uns fidalgos franceses, acompanhados do Bispo Nónego de Vendôme, que veio a ser Bispo do Porto. Este episódio veio a ser conhecido como «Armada dos Gascões». Tendo expulsado os mouros do Porto, consagraram solenemente a cidade à Virgem e depois da conquista, ergueram umas fortes muralhas e, num dos arcos principais dessa fortificação (o do morro da Sé ou da Penaventosa) colocaram a imagem de Notre Dame de Vendôme, imagem que terá sido oferecida pelo bispo acima referido. Por isso, antes de ser Invicta, ela é Civitas Virginis, isto é, Cidade da Virgem.
Só em 1111 é que Dona Teresa de Leão concedeu a D. Hugo a posse do Porto e, por isso, a cidade do Porto ficou sob jurisdição do Bispo e não do Rei Afonso. Por isso, segundo José Hermano Saraiva, o Porto nunca foi a Capital de Portugal, já que não pertencia ao Rei.
Deste modo, a verdadeira padroeira da Cidade do Porto é Maria, Nossa Senhora da Vandoma, que hoje, dia 11 de Outubro, celebramos com grande solenidade, se bem que não com tanta festa como no S. João. Percebemos, por isso, que Nossa Senhora tenha a invocação de Vandoma (cidade de que era natural o bispo D. Nónego), mas ela também é conhecida por Nossa Senhora do Porto da Eterna Salvação ou, simplesmente, Nossa Senhora do Porto. A devoção foi levada do Porto, durante os Descobrimentos, para todo o mundo, tendo chegado ao Brasil e às Índias.
No ano de 1954, o Bispo Dom António Ferreira Gomes instituiu esta invocação de Nossa Senhora da Vandoma como Padroeira da Cidade e da Diocese do Porto e, desde então, esta é a invocação que se celebra mais nesta cidade com grande solenidade neste dia 11 de Outubro.
SARAIVA, José Hermano. História de Portugal . Lisboa, Círculo de Leitores, 1981.
OLIVEIRA RAMOS, Luís A. de (Coord.). História do Porto. Porto, Porto Editora, 1994.
GONÇALVES COELHO, José Júlio. «Notre-Dame de Vendome et les armoiries de la ville de Porto: mémoire historique et archéologique». Vendome, França. Bulletin de la Société archéologique, scientifique et littéraire du Vendômois (XLX), 1907 (2º Trimestre).